6.06.2006

Os professores, os pais, a ministra e os outros



Trata-se de algo de que venho falando há tempos, mas mais concentrado sobre a futura «carreira docente»

Um dos temas mais debatidos na actualidade é o da reforma do Estatuto da Carreira Docente (ECD).
Todavia, sem ser por acaso, tem-se restringido o debate a um dos itens de classificação dos professores na avaliação que a direcção executiva da escola terá de fazer acerca do mérito do desempenho de cada um dos docentes (artigo 46º do projecto).
A ministra da educação, seguindo a cartilha que caracteriza este executivo, vai-se referindo ao tema como o tem feito com os demais que à sua pasta respeitam: a educação vai mal em Portugal e os responsáveis por tal catástrofe são os professores, por isso há que tudo fazer para os punir.
Depois os indefectíveis do partido e os outros que apenas por acharem que este gabinete faz coisas o querem apoiar, vão refinando a argumentação, a qual, por mimetismo associado à preguiça de muitos comentadores e jornalistas (a maioria dos quais nunca leu nem vai ler o ECD), se vai impondo no discurso corrente.
Uma coisa é certa: uma asneira, mesmo a mais bem disfarçada e ainda que muitas vezes repetida, nunca será mais nada do que isso mesmo, uma asneira.
Diz-se (sobretudo repete-se) que os sindicatos (não se diz os professores por preconceito ideológico) estão contra «porque são sempre do contra», sendo uma espécie de forças de bloqueio das reformas que vão endireitar Portugal. Com isto quer-se tapar o sol com uma peneira.
Vejamos o assunto com alguma objectividade e comecemos pelo princípio:
o sistema de ensino é organizado pelos poderes públicos, concretamente pelos governos, que o moldam de acordo com a sua ideologia ou pelo menos segundo a sua vontade.
Daí que a escola actual não seja nem mais nem menos do que aquilo em que os senhores políticos (que nestes 30 anos governaram a pasta da educação) a quiseram tornar.

Na sequência do 25 de Abril de 1974 houve nesta área transformações inevitáveis e positivas, como a democratização do ensino e a garantia do acesso universal. Mas o disparate começou logo a seguir.
Intencionalmente desgastou-se a autoridade dos professores e encetou-se o desprestígio da função.
Os «cientistas da educação», espécie de sociólogos pós-modernos que se incrustaram na área do poder, conseguiram vender a ideia falaciosa de que aprender não é algo que exija esforço e sacrifício e também que a autoridade (qualquer autoridade) é por natureza opressiva e por isso incompatível com um ensino «moderno».
Foram assim afogando a escola numa complexa rede burocrática, desgastando a imagem do professor (esse ente «autoritário»; agora crismado de «privilegiado») e degradando o seu estatuto.
O resultado está à vista.
A verdade é que a educação nunca foi encarada, seriamente, como um vector estratégico para o desenvolvimento do país. Os sucessivos governantes mais não fizeram que engendrar esquemas para falsear as estatísticas do «sucesso escolar», como falsearam as regras de apuramento da verdadeira taxa de desemprego ou do exacto valor do défice orçamental.
Para enganar quem? A história os condenará. Mas por enquanto a festa continua.
À semelhança do que já fizeram com os juízes, com os funcionários públicos e com outros, estes governantes alijam com facilidade as responsabilidades próprias e atiram as culpas do que está mal para cima de outros, que hão-de servir de bodes expiatórios.
E a cereja em cima do bolo vem a ser que a máquina mediática, que tão bem têm sabido olear, lhes vai dando lastro para prosseguir, com altas taxas de popularidade (e só isso verdadeiramente conta). Assim, têm conseguido pôr os portugueses uns contra os outros, sem que estes se apercebam que isto vai tocar a todos (menos aos do costume, como é óbvio).
Os professores não estão, evidentemente, contra o princípio de que as promoções hão-de resultar da apreciação do mérito profissional de cada um deles; como também não são contra a participação dos pais dos discentes na vida da escola; apenas não estão dispostos a ser prisioneiros daqueles.
E na verdade parece relativamente consensual que numa sociedade democrática os pais devem poder participar na definição estratégica do projecto escolar e que devem envolver-se nas actividades educativas a que sejam chamados a participar, etc.
Mas a avaliação do mérito dos docentes é uma coisa séria de mais para ser posta, ainda que apenas de modo residual, nas mãos deles.
Se se quisesse fazer uma verdadeira reforma do sistema de ensino, com vista a uma transformação radical do país no espaço de uma geração, o caminho era totalmente outro, o que inevitavelmente se reflectiria no ECD.
O princípio haveria de ser a verdade (e não apenas a aparência). E a táctica passaria pelo reforço da matemática, da física, da biologia, da língua pátria, das línguas estrangeiras e da história. O resto seriam opções que não contariam para o totobola.
O mérito dos professores e dos alunos havia de ser apreciado, claro. Mas com verdade (sempre ela), sem recurso a limites quantitativos para acesso aos escalões mais altos da carreira docente (veja-se o projecto de ECD; Mas porque é que só uma percentagem ínfima há-de poder ser excelente?).
E com a assumpção que haveria alunos excelentes e alunos maus, e que estes teriam de ser penalizados (é assim na vida, porque é que não há-de ser assim na escola?).
A taxa de «sucesso escolar» cairia drasticamente, para recuperar daqui por 20 anos, quando este já fosse um país diferente.
Ao invés e por incrível que possa parecer, a ministra da educação, a quem se não pode seriamente atribuir qualquer inversão relevante do caminho para o abismo que o sector da educação vem trilhando, tem granjeado a simpatia de muitos comentadores, apenas «porque sim». Porque quanto à reforma que o sistema precisa: nada.
E quem ler atentamente o projecto do novo ECD verá que a malha administrativa se adensa, a autoridade dos professores continua a diluir-se e o desprestígio da profissão se acentua. O que é que daqui se pode esperar que não, apenas, o poupar de uns trocos?

In Dizpositivo